Princípio nº1 : A necessidade cosmopolítica
« A questão », « os desafios », enfim: « a problemática da Água » são intrinsecamente cosmopolíticas – e isto segundo todos os critérios através dos quais julgamos: quer seja através de uma escala mundial, multilateral ou regional. O conjunto destas questões torna a formação de uma verdadeira cosmopolítica da Água, assim como a sua discussão a nível transnacional, transdisciplinar e intercultural indispensáveis.
Princípio nº2 : Para além das políticas da Água
Hoje em dia não nos podemos satisfazer com « políticas de Água » e muito menos com estratégias administrativas de gestão e de repartição dos recursos hídricos. Porquê? Porque estas políticas e estratégias provaram a longo termo que elas são frequentemente cegas, unilaterais, desiguais, regidas por interesses particulares, e porque, mesmo quando elas parecem ser mais esclarecidas, falta-lhes um corpo de valores afirmados solenemente pela comunidade internacional que se impõe a essas políticas e assim das quais estas políticas não podem dispor à vontade. Por conseguinte, não se deve fundar nenhuma expectativa séria a propósito dos resultados efectivos de uma simples coordenação de políticas nacionais e regionais da Água. Com efeito, a coordenação não pode produzir per se sabedoria e igualdade, se estas não se encontram já presentes no seio da própria reflexão política e administrativa que precede a acção.
Princípio nº3 : Para além de uma abordagem geopolítica
Uma « geopolítica da Água » revela-se ser igualmente insuficiente, à vista daquilo que está em causa e dos respectivos desafios. Numa altura em que a geopolítica investiu todas as matérias, ela revelou ao mesmo tempo os seus limites face a problemáticas mais críticas como a Fome, os conflitos armados e, claro, a Água. Sem dúvida a geopolítica da Água tem a virtude de chamar a atenção dos governos e da maioria para os problemas de preservação, de gestão e de repartição dos recursos hídricos e de favorecer uma perspectiva destes problemas a nível mundial. Mas o seu defeito reside no facto se limitar a ser descritiva e, sobretudo, de ser desprovida de uma acção real sobre os actores políticos responsáveis. Ela é assim útil, mas não suficiente, e exige ser substituída por um projecto mais ambicioso.
Princípio nº4 : Poder julgar objectivamente a propósito das políticas e das geopolíticas da Água
A elaboração de uma cosmopolítica da Água teria a virtude, por um lado, de tirar a geopolítica da Água da « noite em que todos os gatos são pardos », de a libertar da sua relatividade face às políticas nacionais ou regionais da Água e, por outro lado, de possibilitar a formação de um juízo crítico e objectivo sobre estas políticas. Com efeito, daqui em diante, já não é suficiente ter em conta os diferentes pontos de vista públicos e privados sobre o acesso à água e à sua distribuição equitativa. É necessário também poder emitir um juízo a propósito da justeza desses pontos de vista frequentemente opostos e poder arbitrar entre eles de acordo com uma lei comum, que se deve situar para além de todos os interesses particulares e que por essa razão só pode ser cosmopolítica.
Princípio nº5 : A paz como horizonte de uma cosmopolítica da Água
O que é que é verdadeiramente próprio a uma cosmopolítica e que permite de a diferenciar de uma geopolítica da Água? O traço característico de uma cosmopolítica, desde que este conceito foi elaborado pelo Iluminismo e particularmente por Emmanuel Kant, é de relacionar toda a ambição de « governo mundial » ao objectivo superior de estabelecimento de uma paz durável. Resumindo: não se pode pensar nenhuma cosmopolítica fora do horizonte de uma paz durável, e mesmo talvez de « paz perpétua ». Tal perspectiva vai muito além do quadro de uma géopolítica que se contenta de registar as relações efectivas entre as nações, a sua história, de defender os argumentos dos vários lados e de constatar eventualmente a profundidade dos seus conflitos. O que constituirá o primeiro motor de uma cosmopolítica da Água será por conseguinte a vontade de pensar e de agir sobre a problemática mundial da Água sob todos os seus aspectos – mesmo se eles se podem revelar contraditórios e conflituosos – em função do objectivo dominante de uma paz durável entre as nações, as etnias, as culturas e as comunidades.
Princípio nº6 : O acesso a uma água de qualidade como direito humano
Para que uma cosmopolítica da Água se conceba como visão, filosofia, política e realização prática, não só é necessário que ela seja entendida como vector da paz durável, mais também que o acesso a uma água de qualidade seja plenamente reconhecido pela comunidade internacional como um direito humano (individual e colectivo) de uma importância excepcional, e um direito inelutável. Isso deve ser plenamente reconhecido ao nível declarativo, solenemente afirmado pela comunidade internacional no seguimento da Declaração dos direitos do Homem de 1948 e de outras Declarações universais como a de 2001 sobre a diversidade cultural, mas deve também ser realizado no terreno de maneira concreta graças a uma convenção internacional e a outros instrumentos jurídicos apropriados.
Princípio nº7 : A preeminência dos imperativos éticos
Apesar de todas os constrangimentos económicos, sociais ou estratégicos invocados pelos respectivos executivos, a gestão (nacional, regional, internacional) da Água deveria ser não só des-privatizada mas deveria ser igualmente subordinada a imperativos éticos considerados como reguladores e como não susceptíveis de adaptações. O respeito por esses imperativos éticos, definidos ou reafirmados pelos representantes da comunidade internacional, da comunidade académica e da sociedade civil, seria posta sob o seu controlo permanente. Em particular, o assegurar ou a posta em prática de uma distribuição pública de água de qualidade para todos deveria ser considerada como um objectivo prioritário em relação a todos os outros – apesar de todos os « constrangimentos impostos pelo mercado » de « segurança nacional » ou das dificuldades financeiras – e, por conseguinte, um objectivo que cria uma obrigação de meios inevitável para os respectivos executivos.
Princípio nº8 : A cosmopolítica acima do direito normativo
Outro aspecto da preeminência do ponto de vista ético: as questões da Água não podem ser deixadas ao cuidado dos juristas nem ao cuidado dos actores de decisão políticos ou chefes de empresas. Esse facto significa não apenas que o direito público e privado da água, nacional e internacional, que existe e que se encontra em formação, não pode pretender a um autonomia, mais que ele deve também ser ainda subordinado aos princípios da cosmopolítica da Água e ao direito cosmopolítico em geral. Com efeito, à imagem da cultura, a água não é susceptível de ser « uma mercadoria como as outras ». Pelo contrário, tudo atesta da sua singularidade irredutível, começando por essa qualidade insubstituível que é: sem ela, a vida não é possível. Apesar das convenções em vigor ou dos instrumentos jurídicos projectados permitindo emitir um juízo a propósito de uma problemática da Água (por exemplo, num litígio transfronteiriço), não se recorrerá exclusivamente à lei definida por tais instrumentos, mais verificar-se-á que essa lei é compatível com o direito cosmopolítico e avaliar-se-á as respectivas situações à luz de princípios cosmopolíticos.
Princípio nº9 : Para uma abordagem conjunta dos problemas da Água e da Cultura
A Água e a Cultura encontram-se ligadas numa certa medida, no sentido em que os homens não podem viver sem uma e sem a outra. Só uma abordagem cosmopolítica dos « problemas do mundo » permite perceber a importância de tal afirmação e das suas consequências. A força do hábito e a preguiça intelectual incitam, com efeito, a considerar as « questões culturais » e « a questão da água » como elementos estrangeiros, que supõem conceitos, técnicas e abordagens absolutamente diferentes, tanto para a sua compreensão como para a sua « resolução ». Pelo contrário, a filosofia cosmopolítica, tal como ela se constituiu desde há dois séculos e meio, tem a capacidade e o dever de identificar as várias ligações presentes entre as problemáticas da Água e as problemáticas da Cultura, de aproximar aquilo que está em jogo e os seus desafios, de pôr em evidência a convergência necessária dos meios políticos, jurídicos, económicos, educativos e sociais que permitirão a apropriação conjunta daquilo que está em causa e dos desafios respectivos para lhes poder fornecer uma resposta mais completa e útil.
Princípio nº10 : Uma reafirmação pelo exemplo do projecto das Nações Unidas
Nós omitiríamos o essencial se não entendêssemos que, com o projecto de construir uma cosmopolítica da Água, (que se inscreve no seguimento da experimentação com êxito de uma cosmopolítica da diversidade cultural conduzida pela Unesco desde 1996 e que se combina estreitamente com ela), aquilo que está em jogo e o objectivo situam-se para além de uma abordagem renovada destas questões essenciais para a Humanidade que são a Água e a Cultura. Com efeito, para além da resolução de conflitos declarados ou potenciais nos palcos da Cultura e da Água, o que se encontra em jogo não é nada menos que a própria refundação do projecto geral das Nações Unidas graças ao vector potente que constituiria o desenvolvimento conjunto de uma cosmopolítica da água e de uma cosmopolítica da diversidade cultural. Ao favorecer essa dinâmica cultural, que beneficia certamente de um apoio decisivo da sociedade civil e da comunidade académica internacionais, as Nações Unidas teriam a ocasião histórica de superar pelo exemplo os seus recentes fracassos mais terríveis (Ruanda, Afeganistão, Iraque, Sudão, RDC,...), afim de relançar o seu projecto em conformidade com a sua inspiração inicial, ou seja, precisamente, a ideia de um projecto cosmopolítico.
Tradução: Teresa Pedro